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Se você acha que a CNV serve para acolher outras pessoas, independente do que elas façam, ou para evitar conflitos, você não entendeu nada

Na semana passada, li o desabafo de uma amiga que declarava-se exausta de tentar fazer os outros sentirem-se confortáveis às custas do próprio bem-estar e completava dizendo: “Vou falar mesmo e, às vezes, vou enfiar a CNV no meu c* e fod*-se.”

Eu confesso que cheguei a rir, ao encontrar-me, uma vez mais, com essa visão utilitarista e complacente da CNV nas redes sociais, ao mesmo tempo que me senti animada a abrir novamente o espaço para esse diálogo. Não apenas porque escolhi e me comprometi a difundir a CNV com responsabilidade, mas sobretudo porque acho uma pena que perdamos de vista seu potencial em apoiar o empoderamento de grupos vitimados pela opressão e consequentemente, mudanças sociais que almejamos.

Em primeiro lugar, a CNV não existe para que a “usemos” com os outros. Ela não é uma técnica, nem um conjunto de ferramentas ou recursos para “aprimorar relações” ou para tornar conversas “difíceis”, em algo mais palatável. 

Quando propagamos essa ideia, estamos reduzindo a CNV ao aspecto da instrumentalização (aprendizado dos recursos de comunicação), que dá suporte à dimensão interrelacional, sobre a qual a CNV também atua, mas excluímos a dimensão intrarrelacional e, sobretudo, a dimensão sistêmica. Esta, cuja transformação é nosso principal objetivo com a CNV.

É preciso compreender que praticar CNV ou escolher viver a consciência CNV é um convite a caminhar nessas três dimensões ao mesmo tempo, já que elas se articulam e se nutrem mutuamente na manutenção dos sistemas sociais vigentes e, consequentemente, no fomento das violências estruturais que conhecemos.

A dimensão intrarrelacional se refere a maneira como aprendemos a pensar e nos relacionar com nós mesmos. Toca os nossos traumas e dita nossa reatividade.

A dimensão interrelacional diz respeito ao que aprendemos a pensar, como nos comunicamos e nossos comportamentos na interação com os outros e com tudo que nos cerca.

E a dimensão sistêmica engloba aquilo que foi construído socialmente, para sustentar os sistemas de dominação vigentes, incluindo suas crenças. Aqui, estamos falando do patriarcado, do capitalismo, do racismo, do  sexismo, etc.

E olhando para essas três dimensões não é difícil perceber como elas se articulam e se retroalimentam. Afinal, é o aprendizado sistêmico (reproduzido a cada geração) que se manifesta nas relações interpessoais e consequentemente gera os traumas, desde nossa primeira infância.

Ao mesmo tempo, é o sofrimento psíquico-emocional, em consequência dos traumas vivenciados, que nos impede de aceder a recursos relacionais diferentes dos habituais, que possamos ter aprendido (em cursos de CNV, por exemplo). Nossa reatividade é, portanto, uma tentativa de nos proteger deste sofrimento, que se vale dos comportamentos automatizados, ao mesmo tempo que os retroalimenta, sustentando a violência em nossas interações/relações e consequentemente, nutre, uma vez mais, as violências sistêmicas.

Assim, a CNV é uma proposta de transformação, nessas três dimensões, ao compreender que não é possível promover transformação social, sem essa articulação.

E  fica claro, que o objetivo maior da CNV não é melhorar nossa relação com os outros, não é falar de maneira que os outros se sintam confortáveis, nem muito menos silenciar os grupos vitimados, diretamente, pelos sistemas de dominação vigentes.

Quando articulamos todas as dimensões, percebemos que “não se expressar em CNV”, como decidiu a minha amiga, em seu desabafo, não necessariamente nos afasta do convite que a CNV nos propõe. Ao contrário, se faço essa escolha para deixar de me submeter às violências relacionais que espelham violências estruturais dos sistemas de dominação vigentes, em realidade, posso estar contribuindo para a transformação social que desejo e que também é o objetivo da CNV. 

Eu costumo repetir, nos meus treinamentos, que para aprender a nos submeter e “passar pano” pras violências que vivenciamos,  a gente não precisa da CNV, afinal já sabemos fazer isso muito bem.

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