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Uma “piada”, um tapa. Onde está mesmo a violência?

Qual é o olhar da CNV para o que aconteceu na cerimônia do Oscar?

Recebi algumas mensagens me pedindo para comentar o episódio do tapa que o ator Will Smith deu no humorista e apresentador da cerimônia Chris Rock, sob o olhar da CNV. Alguém me perguntou se neste caso seria “uso protetivo da força”, outra pessoa me disse que assistir ao tapa havia sido gatilho para suas dores emocionais. Então eu quero ir devagar.

Para começar, quero dizer que não escreverei em nome da CNV, mas em meu próprio nome, a partir das lentes pelas quais aprendi a olhar o mundo e que a CNV me apoia a sustentar. Depois, quero relembrar alguns convites que a CNV nos faz:

1)  “Deixar de lado” a perspectiva do que é certo e errado para que possamos nos abrir para observar e compreender os seres humanos, a partir de suas experiências emocionais e tentativas de satisfazer necessidades.

2)  Compreender que por trás das violências existe DOR, representando necessidades insatisfeitas pedindo por cuidado.

Agora, vamos ao “episódio” em si mesmo. Após uma piada que Chris Rock fez sobre a esposa de Will Smith, este se dirigiu ao palco da cerimônia e deu um tapa em Chris (observação), em seguida, já sentado na plateia gritou “Deixe o nome da minha mulher fora da sua maldita boca”. O que ele estaria sentindo? Talvez raiva, provavelmente cansaço. O que ele queria? Para qual necessidade estava pedindo colaboração? Talvez respeito, consideração, talvez cuidado.

Will reagiu à piada, verdade. Reagiu com violência física, verdade. Mas onde está nosso foco, neste momento?

Uma parte do que li na internet foram opiniões julgando a violência praticada por Will como intolerável. Há inclusive uma discussão em torno da possibilidade dele perder a estatueta que ganhou, alguns minutos depois do episódio. E claro que isso aconteceria. Em uma sociedade punitiva como a nossa, essa atitude não me surpreende em absoluto. Parte de nós quer usar outra violência para mostrar “ao mundo” que esse tipo de violência (o tapa em plena cerimônia do Óscar) é inadmissível e não pode se repetir jamais. É preciso dar o exemplo, igualzinho quando éramos castigados por nossos professores ou avós; vai que alguém quer nos copiar num futuro, verdade?

Outra parte de nós está defendendo a atitude de Will. Afinal “esse tal Chris Rock mereceu, afinal é um insensível, xenófobo” (algumas das coisas que li).  Alguém precisava “cortar” a violência que Chris parece exercer sobre outras pessoas (inclusive ao que parece sobre a própria esposa de Will, na cerimônia de 2016). Queremos “fazer justiça com nossas próprias mãos” e isso também não me surpreende.

Mais um episódio e nós estamos nos comportando da mesma maneira, uma vez mais: escolhendo um dos lados. Eu quero ser do time do mocinho ou do bandido? Ah e quem é o mocinho? E quem é o bandido?

O que eu gosto mesmo é de olhar para os episódios de violência em nossa sociedade e refletir sobre de que maneira EU e VOCÊ estamos colaborando o que vemos. Minha primeira pergunta é: será que lembramos de tudo isso quando damos risada do tipo de piada que Chris Rock fez sobre a esposa de Will? Na cerimônia do Óscar elas parecem dar um tom “divertido” ao evento. Quando estamos rindo dessas piadas, não somos capazes de enxergar o quanto elas desatendem necessidades humanas e alimentam assim a violência que nasce da dor? Existe ali, uma experiência emocional que a gente desconhece completamente, das pessoas envolvidas. Neste caso em específico, ainda envolta em interseccionalidade: começa com uma crítica a uma mulher negra que enfrenta uma doença. Aqui, certamente não estou apta e nem pretendo tecer um aprofundamento a respeito. Leiam as maravilhosas Carla Akotirene e Djamila Ribeiro, por exemplo.

Mas quero te convidar a uma reflexão: quanto da reatividade das pessoas não reflete uma exaustão da violência a que são submetidas? Necessidades insatisfeitas de maneira crônica se tornam sensíveis e, portanto, às vezes uma piada a mais nos leva a reagir. Isso não está certo, nem está errado, é humano e eu e você também temos estas mesmas atitudes, às vezes.

Li na reflexão da querida Kaká Rodrigues, publicado há umas horinhas atrás sobre o episódio (e agradeço demais a ela por isso), um recordatório que quero compartilhar também aqui:

Arun Gandhi, neto de Mahatma Gandhi, escreveu no prefácio do livro Comunicação Não-Violenta, no qual contou que seu avô descrevia a violência passiva como mais traiçoeira que a violência física: “no fim das contas, a violência passiva gerava raiva na vítima, que, como indivíduo ou membro de uma coletividade, respondia violentamente. Em outras palavras, é a violência passiva que alimenta a fornalha da violência física. Em razão de não compreendermos ou analisarmos esse conceito, todos os esforços pela paz não frutificam, ou alcançam apenas uma paz temporária. Como podemos apagar um incêndio se antes não cortamos o suprimento de combustível que alimenta as chamas?”

Assim, piadas não são inofensivas. Nossa linguagem não o é. Nossas críticas, julgamentos e “piadas” alimentam diariamente a violência física e nos afastam da paz que dizemos querer cultivar no mundo. Então, em lugar de colocar seus esforços em “escolher de que lado você está” nessa história toda, que tal repensar como você se comunica com as pessoas, como se relaciona, como educa as crianças da sua vida e que tipo de show business e programas de tv anda aplaudindo? Podemos não ter cerimônia de Óscar no Brasil, mas temos muitos outros programas alimentado a discórdia e a violência diariamente por aqui. 😉

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