Lidar com as histórias que crio na minha cabeça ainda é o meu grande desafio na prática da Comunicação Não-Violenta, ou melhor dizendo, na vida mesmo…
Falo dessas histórias sobre o não dito, aquilo que imagino para justificar a ação (ou fala) de uma outra pessoa em relação a mim, quando não sei o que a motivou, mas tenho uma necessidade enorme de compreender.
Eu não sei como é para você, mas eu sou uma verdadeira mestra na “arte” de criar histórias das mais mirabolantes possíveis para justificar o comportamento alheio. E essas histórias não costumam ser muito carinhosas comigo. Comumente, elas me enchem de acusações e me “responsabilizam” pelo comportamento desse outro, me levando, portanto, a sentir culpa.
Sim, infelizmente, muitas vezes ainda visito este lugar (da culpa) onde claramente experimento sofrimento: dor, tristeza e as vezes desespero. Como costuma dizer minha parceira Juliana Maroto:
Por reconhecer esses meus processos é que há tempos, pratico a checagem das histórias com as pessoas envolvidas. Porque afinal, a única verdade é que NÃO SABEMOS A VERDADE, até que possamos escutar o outro. Somente esta outra pessoa pode nos contar o que se passa ou passou no seu mundo para que atuasse da maneira que atuou. Checar é uma prática da CNV e uma escolha, que para mim significa “um passo para a manutenção do equilíbrio e da paz interior”.
Você pode estar se perguntando: “mas porque você simplesmente não deixa de se importar?”. Porque simplesmente me importo. Em sua palestra Call the courage (original Netflix), Brené Brown diz que somos programados biologicamente para nos importar com a opinião alheia. Assim, todos nos importamos, mesmo que digamos o contrário. Eu também acho que isso tem a ver com nossas necessidades de pertencer e sermos vistas.
Por outro lado, eu também gostaria de não me importar, ao mesmo tempo em que busco cultivar a autocompaixão com respeito ao ritmo dos meus processos internos — cura e autoconhecimento. Assim, checar a realidade com o outro amplia minhas estratégias para estar em equilíbrio e paz, já que por enquanto não consigo não me importar (será um dia possível para alguém?).
Portanto, escolho checar, perguntando. E escutar, a partir desta investigação, é uma dádiva. Grande parte das vezes, descubro que nenhuma dentre as muitas versões da história que criei na minha cabeça era verdadeira. Essa descoberta costuma me gerar um grande alívio, já que minhas histórias em geral são bem duras comigo.
Ao mesmo tempo, escutar a verdade me ajuda a voltar para o momento presente. Afinal, as histórias sempre me trazem o passado ou refletem um medo em relação ao futuro e estar fora do presente é desconectar-se. A conexão só acontece no presente, quando estou comigo mesma ou com o outro e com as necessidades vivas, neste momento.
Escutar a verdade também me ajuda com a prática do “não levar para o pessoal”. Suspeito que você já tenha escutado essa recomendação antes. Eu escutei muitas vezes, mas nunca havia conseguido antes da CNV. Hoje “não levar para o pessoal” faz sentido quando compreendo que o outro está realmente atuando em uma tentativa de atender suas próprias necessidades e, portanto, não é mesmo sobre MIM.
Brinco com as pessoas com as quais compartilho CNV que este é um aprendizado sobre “deixar de ser o centro do Universo”. Quando eu checo a realidade com o outro, me lembro deste aprendizado e consigo me reconectar.
Também gostaria de trazer uma reflexão que está muito viva em mim e talvez tenha passado pela sua cabeça: “E quando o outro não quer me contar qual é a sua realidade? Quando responde com um não quero/posso falar sobre isso ou mesmo com o silêncio? O que fazer? Porque então, não consigo usar essa estratégia que tem funcionado tão bem para mim.
Confesso que neste episódio que está vivo em mim foi muito difícil aceitar esta resposta, mesmo sabendo que o outro certamente estava cuidando de algo importante quando fez esta escolha. Isso porque, embora um lado meu queria respeitar e cuidar desse outro, era desesperador ficar com as minhas histórias (todas possíveis quando não tenho acesso à verdade). Elas me roubavam o equilíbrio e a paz e eu não conseguia encontrar uma estratégia eficiente para trazê-las de volta.
Por outro lado, surgiam novas histórias que me cobravam não me importar, que me cobravam estar bem, que me cobravam ter outros recursos. Mais histórias perversas que eu contava sobre mim mesma e sobre o que DEVERIA estar fazendo. Histórias que aprendi em algum momento da minha vida e que em alguns momentos voltam e eu ainda volto a acreditar nelas…
Foi então que acionei o recurso atualmente mais valioso que conheço para apoio à conexão interna: a escuta empática. Hoje, um amigo de jornada me ajudou a escutar as histórias que por vezes ainda me conto e separar tudo isso da realidade, ainda que desconhecida. Juntos, pude reconhecer o quanto é difícil manter minha conexão interna nestes momentos, porque algumas destas histórias “se metem” entre mim e o reconhecimento do meu próprio valor.
E foi estranho e ao mesmo tempo libertador me dar conta de que estava pedindo para o outro reconhecer meu valor (quando lhe pedia para me dar uma resposta — queria uma garantia que não havia ido parar na sua zona de julgamentos e que, portanto, não era uma má pessoa que havia dito ou feito algo “ruim”), enquanto eu mesma não era capaz de fazê-lo, naquele momento de dor.
Neste momento, pude reconhecer em mim, como a culpa me impedia de me conectar com o outro, com seu pedido e com suas necessidades.
E as histórias que o outro possivelmente está contando a si mesmo? Eu não as conheço, mas talvez elas também o estejam impedindo de reconhecer o meu valor (assim como as minhas estão fazendo comigo). Talvez o outro esteja em dor, assim como eu, e pode ter se desconectado de si mesmo. Então, como teria espaço para manter conexão comigo?
Percebi como quase “ultrapassei” a barreira do outro (estava a ponto de perguntar-lhe novamente sobre a sua realidade), “apenas” porque estava imersa em culpa e queria sua ajuda para liberar-me… Outra vez ela. O “apenas” está entre aspas porque cada vez mais noto como esse aprendizado de sentir culpa é um “problemão”, sobretudo para nós mulheres.
Aprendemos muito bem a assumir responsabilidade pelos sentimentos e ações do outro e sempre acreditamos que podíamos ter feito diferente ou que é possível remediar o que foi dito/feito. E como dizia Marshall Rosenberg, não somos capazes de escutar a dor do outro quando achamos que temos culpa de algo.
Assim, perdemos a capacidade de nos conectar conosco mesmas e com os outros, em uma situação em que assumimos a responsabilidade por tudo que está acontecendo…. e muitas vezes, assumimos uma reação automatizada ao desespero que gera ainda mais desconexão.
Durante a escuta, consegui separar minhas histórias e aprendizados sobre a culpa daquilo que o outro estava pedindo e pude finalmente me conectar com suas possíveis necessidades. Claro que no exercício da escuta apenas criamos hipóteses sobre a realidade dessas necessidades, já que não podemos checar o que é verdade para esse outro no momento. Mas o importante não é se acertamos (até porque talvez nunca cheguemos a saber a verdade), mas sim que este processo nos ajuda a nos conectar, CONFIAR (para além de saber racionalmente) e CELEBRAR que o outro está cuidando de algo importante para ele.
Mais uma vez é sobre o outro e não sobre nós e isso é tudo o que importa, neste momento. Conectar-me verdadeiramente com essa energia desperta em mim a vontade genuína de contribuir com o outro e volto a sentir alegria com essa possibilidade, o que torna fluida uma ação consciente neste sentido.
Talvez você esteja pensando (porque as vezes eu também me pergunto): “mas se você já sabe disso, porque ainda cai nessas armadilhas da culpa?” E minha resposta a esta pergunta é: porque a culpa está demasiada enraizada em mim, acolho e noto que vou me curando dela, cada vez que reconheço como ainda “dirige” algumas das minhas reações.
E cada vez que escuto com empatia ou que recebo empatia tenho uma oportunidade de relembrar que nunca mais quero atuar a partir dela. Quero ser capaz de desaprender por completo esse aprendizado que não serve à vida e ainda me leva a tropeçar nas minhas relações. Quero me reconectar com minha natureza essencial que, como aprendi com a CNV, se realiza quando faz tudo que faz a partir do amor e somente a partir dele.
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